Rotina

Na mão direita eu segurava o celular, com a esquerda fuçava a bolsa atrás do cartão de passes do ônibus municipal. Sorte que sou mulher e consigo fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Meu estagiário finalmente atendeu e eu derrubei várias moedas no chão.

_Eu esqueci de enviar o texto para o cliente. Você pode fazer isso pra mim, antes de ir para a faculdade? Por favor! Prometo que amanhã eu pago o seu café cheio de firula.

Recolhi as moedas e corri em direção ao ônibus que já fechava as portas. Entrei ofegante e cumprimentei o motorista. Chateada, percebi que ia chegar novamente atrasada em casa. Já contava os minutos para chegar alguma mensagem do meu marido.

Não deu outra: o celular apitou e o nome dele pipocou na tela. Ele me perguntava que horas eu ia chegar.

Digitei. “Acabei de entrar no ônibus. Ainda vou levar uma hora pra chegar. Me desculpa?”

Na resposta ele me avisou que havia acabado o suco e perguntou se no caminho eu podia passar no mercadinho, antes que fechasse.

Pensei em comprar algum congelado para levar. Meu marido gostava tanto quando eu cozinhava para ele… Mas na última semana, comemos lasanha congelada ou sanduíches praticamente todos os dias. Estava me sentindo um tanto culpada.

Talvez se eu levasse alguns quadrinhos novos pudesse compensar. Mas as bancas já estariam todas fechadas àquela hora. E não havia nenhuma livraria no meu itnerário.

Desci os degraus do ônibus e o celular apitou novamente. Era meu estagiário confirmando o envio do e-mail. Agradeci com novas promessas de café grátis.

Caminhei rapidamente em direção à minha rua e quase esqueci de passar no mercadinho.

Entrei correndo e a porta de aço foi fechada atrás de mim. A moça do caixa me olhou feio. Ia se atrasar por minha culpa.

Peguei o suco de uva (o favorito dele) e passei na sessão de congelados. Tudo era com recheio de frango (ele detesta). Desisti. Farei uns sanduíches de novo, ou talvez liguemos para o disque pizza.

Enquanto procurava as chaves do portão na bolsa, ele apareceu na porta da frente.

_Nem adianta procurar, amor. A sua bolsa é um limbo entre a nossa realidade e um universo alternativo. Vou aí abrir pra você.

Ele abriu o portão e me abraçou. Perguntou se meu estagiário estava se saindo bem.

Ali, nos braços dele, eu finalmente descansei. Estaria em casa em qualquer lugar do mundo, desde que estivesse em seus braços.

Ele me conduziu para dentro de casa pela mão, falando sobre o seu dia e a última peripécia do viralatas que adotamos: havia comido um fone de ouvido, daqueles pequenos.

Quando chegamos na cozinha eu descobri por que ele ficava tentando controlar aquele sorrisinho de canto de boca desde o portão: ele havia feito arroz, carne moída e fritado umas batatinhas.

_Você anda chegando tão tarde, que achei melhor preparar a janta pra quando você chegasse…

E eu preocupada o caminho todo com o jantar que não fiz para ele…

Enquanto eu tomava banho ele pôs a mesa.

As batatas estavam um tanto cruas, a carne moída salgada demais e o arroz de menos. Mas ele estava tão orgulhoso de seu jantar, que repeti o prato.

Contei um pouco sobre meu trabalho, as pequenas cagadas do estagiário e do trote que os outros funcionários fizeram com ele.

Ele ouvia acariciando minha mão, de vez em quando sem conseguir fingir que não tinha viajado no meio da história comprida.

Recolhi a mesa pensando no sorriso com covinhas com quem eu me casara e pretendia continuar vivendo pelo resto dos meus dias. No meu cotidiano de acordar, trabalhar, voltar para casa e ir ao cinema aos sábados. Na nossa casa precisando de uma reforma e alguns móveis novos. No nosso cachorro arteiro.

Pensando bem, eu não mudaria uma única vírgula da minha rotina.

7 pensamentos sobre “Rotina

  1. Fazia tempo que eu não lia nada assim, ficou muito bom, principalmente a quantidade de detalhes, mesmo sendo um texto curto, achei a parte em que as moedas caem no chão e as trivialidades sobre o cachorrinho e o estagiário muito boas, e pareceriam se encaixar perfeitamente em qualquer texto maior, talvez você possa reaproveitar este texto no futuro pra algo mais longo. Parabéns!

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