A capa do livro

Era um livro velho em uma estante empoeirada. 

Passou pelas gerações da família e foi parar naquela prateleira superior, há anos intocado. De vez em quando levava uma espanada na lombada, mas apenas isso.

Sempre os mesmos livros – os mais modernos – eram retirados para serem lidos. Alguns até já tinham sulcos, na poeira que se acumulava em sua frente, de tantas vezes que eram escolhidos. Mas aquele permanecia lá, com sua capa sem graça, dia após dia, sendo roído pelas traças.

Um dia, a sobrinha foi visitar a casa que ficava em torno da estante. A tia lhe deu papéis e canetinhas e, cansada dos papéis em branco, resolveu procurar desenho para colorir nos tais livros.

Quando a montanha de livros no chão já era grande o suficiente para que ela subisse e alcançasse a prateleira superior, o livro da capa sem-graça foi pego.

De tão velho, assim que foi retirado da estante, a capa se soltou, ficando na mão da garotinha, enquanto as folhas, costuradas, foram ao chão.

Ali caído, as folhas se abriram justamente em uma ilustração onde dunas, camelos e odaliscas lançavam todo o seu encanto oriental nas páginas da narrativa e obviamente, foi o escolhido pela arteira.

Coloriu todos os desenhos que encontrou, até se cansar, a tia chamá-la para o lanche e a mãe chegar para buscá-la.

Na hora de limpar a bagunça que a sobrinha fez, a tia encontrou o livro descapado todo pintado de canetinha. Em vez de se zangar, soltou um sorriso divertido e estava prestes a guardá-lo de volta à familiar estante, quando o título de um capítulo lhe chamou a atenção.

Leu algumas linhas. Depois algumas páginas. Aí mais um capítulo. E quando percebeu que estava há horas lendo, resolveu levá-lo para o quarto e ler tudo.

Abandonou bagunça na cozinha, brinquedos na sala, se deitou e leu até adormecer.
Acordou com o despertador.

Tomou banho, escovou os dentes e prendeu os cabelos. Vestiu-se e guardou o uniforme na mochila.

O ponto de ônibus ficava em frente à sua casa. E passou no horário. Cumprimentou o motorista e foram conversando até o terminal de ônibus, onde se trocou e sentou no banco do cobrador. Ali começava mais um dia de rotina.

Durante as repetições infinitas do itnerário, esperou ansiosamente pelas seis e meia, quando um rapaz bonito entrou. Ele era pontual, sério e levemente entediado. Estava sempre de fones de ouvido e se vestia bem. Ela adorava o perfume dele. Tentou não encará-lo, enquanto ele aproximava o cartão de passes do leitor e passava a catraca, sem lançar-lhe um único olhar.

Suspirou sem esperanças. Ele nunca a notaria.

Passou o resto do expediente pensando no dia seguinte, quando o veria de novo, até que acabou seu turno.

Voltou ao terminal, trocou o uniforme pela roupa comum e, para espairecer, preferiu almoçar sozinha no shopping ali perto.

Era bem tarde, para um almoço, mas ela estava acostumada. Escolheu o self-service, almoçou e tirou o livro da bolsa, para continuar lendo.

Foi por isso que ficou boquiaberta, quando o viu entrando no shopping, comprando sua comida na rede de fast-food e sentando-se na mesa próxima a dela. Estava tão espantada, que não conseguia parar de olhá-lo e deixou o livro sobre a mesa.

Portanto viu quando ele se levantou para jogar os restos no lixo, foi em sua direção e, ao passar por sua mesa, viu o livro. Olhou para ela. Sorriu. Nunca tinha visto seu sorriso e era lindo.

_Já li esse livro.

Ela corou.

_Comecei a ler ontem à noite. Nunca tinha visto ele em minha estante. Minha sobrinha achou e agora não consigo largá-lo.

_Está entre meus favoritos. Mas não vou falar mais nada, para não acabar te contando o final.

Sorriu novamente, disse “boa tarde” e se foi.

Ela desacreditou. Ficou imóvel, vendo-o se afastar. Depois caiu em si, juntou as coisas e correu pra casa.

Resolveu fazer faxina, para o dia passar mais rápido. Deitou e leu todo o livro até o final, para ter assunto para puxar, no dia seguinte. Mal havia conseguido dormir, quando o despertador tocou.

Todo o percurso do dia anterior foi repetido e às seis e meia, ele entrou no ônibus. Ela não pôde conter o sorriso. Ele se aproximou da catraca e passou o cartão.

Ainda sorrindo, ela arriscou:

_Bom dia!

Sem olhá-la, ele acenou com a cabeça e se sentou no fundo do ônibus.

Frustrada, ela pensou que nunca teria lido aquele livro, se ele ainda tivesse capa.

4 pensamentos sobre “A capa do livro

  1. A matéria-prima dos melhores contos é sempre o cotidiano e sua poesia. Sua história comprova isso. Obrigado por fazer minha sexta-feira valer a pena. Abraço

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